Assistente editor: Hugo de Aguiar

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senão se o nada for tudo (cantiga, ou fado)

nada nasce do nada
nem o milho que nasce do chão
nem o homem que nasce do homem
nem a morte que nasce da vida

aqui falamos da terra
que não nasceu do nada
pois já havia tudo
que não nascera do nada

um tudo que faz nascer tudo
e se desfaz no tudo
quando não houver mais tudo

senão se o tudo for nada

então o nada de nada serve
e não existe
porque nem do nada
nada nasce

se o nada não existe
existe tudo
a terra o homem e a morte

o que faz este tudo
sem nada

onde repousa

será no vazio de nada

senão existe
o nada não pode ter vazio

e o tudo reside no tudo
pois não suporta o nada

será que o nada não tem contexto
à volta de tudo

só um bocado
como pedaços de espelho
que colados aos demais
faria tudo

não pode ser
senão o nada seria tudo
e o tudo nada seria

o nada não existe
nem no reverso do tudo

então porque persiste
fazendo-nos crer que existe
colado ao tudo

como num noivado
onde tudo convida nada
e nada convida tudo

será que tudo é um espelho
que suporta o nada
que virado do avesso
nada mostra
nem nada nem tudo

apenas o inane ocre
que é a outra face do tudo
ou nada
que uma vez quebrado
deixou de ser tudo
até de ser nada

o tudo é portanto útil e fútil
dum lado
ócio do nada
do outro parto de tudo

talvez tudo esteja cheio do nada
se assim for

não existe nada nem tudo

ferool

Olhar ausente (cantiga)

Dai-me a esmola dum olhar
como espelho não posso comprar
não sei quem sou
mas sei que estou

A minha existência é mole
não tenho número nem role
sou sem querer
olho sem ver

Não quero ser vosso anojar
nem vosso convite aceitar
apenas peço um olhada
mesmo que seja monada

Olhares ternos não conheço
nem mesmo olhares de travesso
na vida nunca me achei
espelho nunca comprei

Dai-me a esmola dum olhar
mesmo que seja fugitivo
para na minha retina ficar
como um belo olhar cativo

Prometo que não farei
do vosso olhar uma imagem
um espelho comprarei
para vos prestar homenagem

Viverei com vosso olhar
terei enfim harmonia
agora verei a cantar
que até cantar não sabia

ferool

o coxo e os mochos (cantiga)

pousado num mocho
um mocho dormita
quando vem um coxo
de cana aflita

e expulsa a rapina
que na noite grita
que triste é a sina
e que noite maldita

empós tó-carocho
de viés solicita
convidando o mocho
a pousar na chita

sentado no mocho
o coxo dormita
a seu lado no mocho
a ave cogita

que bom é o coxo
que me deu guarita
na ponta do mocho
de largura estrita

no assento acocho
um canto traquina
o milagre do chocho
que bebeu na tina

o pio do mocho
que azeite era mina
depôs o arrocho
e a perna germina

de manhã o mocho
deserto e catita
vê correr o coxo
com a ave bendita

ferool

a corrida do riso ( cantiga ou fado )

o riso foi tão rápido
que ganhou ao sisudo
batendo ainda o chorão

palmas para o riso
ganhou o nosso campeão

riso, risos, riso

os outros que tenham juízo
não é com olhar chorudo
que se vai à competição

riso, risos, riso

que tudo devastas
e não crias prejuízo
nos lábios iconoclastas

pula nas pedras da amargura
ilumina o seu percurso
com tal desenvoltura
que consta que dá um curso

àqueles com trombas de urso
e com rugas insensatas
que avariam o excurso
com trejeitos de bravatas

o riso ganhou
viva o riso, viva o riso
viva o riso até mais não
e aquele que parou
de rir perde o guiso
e afrouxa o coração

riso, risos, riso

ferool

Canção ou fado

Viv'ó vinho

Hora viva senhor dono
Traga um copinho pró tono
E plante-o na folha do sono

Que este que está a ver
Está seco para beber
Que queira, ou não queira crer

Não demore que eu fico
Com cara de mafarrico
Se não tem copo, traga penico

Vivam também os que estão
Aproveitem que é a minha mão
Bebendo mesmo pelo garrafão

Esta vida são dois dias
Um de tristeza e outro de alegrias
Deixemo-nos de cortesias

Ontem foi dia para esquecer
Sei que hoje vou morrer
E não quero ir sem beber

Desculpem-me a brincadeira
Estou sem tostão na carteira
Mas quero tomar a bebedeira

Se não querem conviver
Nem beber para esquecer
Paguem a conta que houver

Que eu bebo por vós até morrer!

Antanho Esteve Calado

aquela linda catraia ( canção ou fado ) - Pantum

das flores quero perfume
dos lábios quero beber
na tua boca o cerume
até não mais apetecer

dos lábios quero beber
os trejeitos de catraia
até não mais apetecer
ou que a lua se esvaia

os trejeitos de catraia
de blusa fina no peito
ou que a lua se esvaia
no céu escuro desfeito

de blusa fina no peito
e na cinta bela saia
no céu escuro desfeito
na cama doce desmaia

e na cinta bela saia
doidivanas e sem jeito
na cama doce desmaia
com o tesão do afeito

doidivanas e sem jeito
aquela linda catraia
com o tesão do afeito
dança na cama sem saia

ferool

a flor.. a fruta.. o amor.. o ciúme.. a morte.. e o poeta… (cantiga)

o que resta duma flor
depois de ser deflorada
uma aflita sem sabor
de liga almiscarada

o que resta da fruta
depois da refeição
o esófago que eructa
e umas cascas no chão…

o que resta do amor
depois do sono chegar
um carnal despudor
e hipotético recomeçar

o que resta do ciúme
depois da louça se desfazer
dois arlequins sem aprume
e bocados no chão a sofrer

o que resta da morte
depois da vida vacilar
um infinitivo suporte
ou um adubo de pomar

o que resta do poeta
depois destas avalias
um sempiterno pateta
que jaze nas elegias

ferool